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Prólogo


Menos de 1% das pessoas do mundo possui diagnóstico de Esclerose Múltipla.

Eu sou uma delas.

Alguns chamam de privilégio, sorte, ou dádiva por ter nas mãos o poder de mostrar a superação na pele. Esse discurso de dádiva não consola ninguém. Você não trocaria de lugar comigo, e se estivesse no meu lugar, não se sentiria privilegiado.

Todos os dias, formigamentos e rigidez muscular não me deixam esquecer que a doença segue comigo. Vivo um pesadelo, sem o alívio de poder acordar.

A vida não é mais fácil por eu ter uma doença. Não estou imune a outras fatalidades e não há uma trégua entre uma tempestade e outra. Tudo segue um fluxo invisível, sem importar se estou pronta para a próxima etapa.

Os pontos positivos são que a doença não me deixará maluca, caduca ou derivados, embora tenha me sentido perto de enlouquecer.

E o mais importante, ela não mata.
Só que essa não é uma história de superação. Como se supera uma doença sem cura e que pode piorar com o tempo? É a história de como, de repente, eu esclerosei.



Capítulo 1


— Ele quer sair de novo — Aurora começou a tagarelar, logo cedo. — Mas você sabe como eu sou, não gosto de me apegar.

Nem olhei para ela. Estava com muito sono para discordar que, na verdade, ela sempre se apegava. Resolvi apenas escutá-la enquanto descíamos de elevador até a garagem.

— E se eu enviar uma mensagem? — continuou, depois de alguns segundos olhando para os pés.

— Às seis horas da manhã?

— Não, Mitali, mais tarde! — respondeu impaciente.

— Ele não disse que ia te procurar?

— Disse, mas e se estiver esperando que eu faça isso?

— Rora, ele te deixou em casa às três horas da manhã. Nem deve estar em casa ainda. Vai assustar o rapaz.

Bocejei e apertei várias vezes o botão da garagem, mesmo sabendo que isso não faria o elevador descer mais rápido.

— Tudo bem. Não quero parecer desesperada — admitiu.

— Então, espera ele te procurar. Quer dirigir?

Como ela negou com a cabeça, assumi o banco do motorista do nosso velho Corsa.

— Tem razão — disse, apesar de não parecer concordar. — Como se sente hoje?

— Com sono — respondi de imediato.

Não costumava ser muito falante pela manhã.

— Estou falando das sensações estranhas que comentou — ela insistiu.

E para ser sincera, eu já havia entendido, só queria fugir do assunto.

— Ainda sinto as pernas formigando.

Passei a mão pelas coxas com a sensação de tocar um corpo que não era mais o meu.

— Teve alguma melhora desde que começamos a academia?

— Na verdade, piorou. Achei que pudesse ser sedentarismo, pela vida que a gente leva — debochei. — Não sei mais o que fazer.

— Talvez procurar um médico...

— Não acho que seja necessário — cortei o discurso que vinha aguentando nos últimos dias.

Ela não entendia o quanto pessoas de jaleco me assustavam. Desde pequena tive experiências traumáticas com agulhas, motivo pelo qual nunca fiz tatuagens, embora até ache que elas tenham certo charme.

— Estou levantando antes de amanhecer, em um sábado, só pra malhar. Tenho que melhorar — brinquei.

Rora não achou graça.

— Continua falando do menino de ontem — pedi.

Qualquer coisa seria melhor do que ela importunando sobre médicos.

— Avisa se piorar?

— Como se eu tivesse mais alguém na vida — confirmei, e nem precisei olhar para saber que ela sorria.

Sempre funcionava. Era só alimentar o seu ego, que ela me deixava em paz.

Liguei o rádio e foi automaticamente para as músicas do pen drive. O som de Dire Straits preencheu a nossa manhã, encerrando o assunto.


Aurora era minha única amiga desde o berço. Talvez pela quantidade de tragédias, essa amizade tenha acontecido por instinto de sobrevivência, mas, pulando os traumas de infância, somos tudo o que temos. Dividimos apartamento, carro, contas bancárias… e se desconsiderarmos a sua mania de superproteção, ela é inofensiva.

Assim que chegamos à academia um cheiro de equipamentos, borracha e pessoas suadas me sufocou.

Eca!

— Sabe qual será o treino de hoje? — perguntei, tentando ignorar o cheiro desagradável.

— Pilates. Quer conhecer?

— Pode ser.

Já que estava ali, seria bacana experimentar de tudo um pouco.

— Começa às sete horas — Rora informou, olhando o calendário de aulas no mural.

— Faltam vinte minutos. O que faremos até lá?

— Vou guardar as coisas no armário e aquecer na esteira.

— Eu vou com você.

Guardamos tudo e fui encher as nossas garrafas com água. Quando voltei, Rora já caminhava no equipamento. Notei que me observava pelo canto dos olhos, enquanto eu subia na esteira.

— O que foi? — perguntei, e levou apenas um segundo para surgir o arrependimento.

Eu já sabia o que era e não queria ouvir.

— Nada — ela falou, dando de ombros.

Com certeza era alguma coisa. Aproveitei que ela desistiu de falar e foquei no meu treino.

— É só que… — continuou, depois de alguns segundos.

Respirei fundo, buscando paciência.

— Andei pesquisando e essas sensações que você tem, pode não ser nada, como pode ser algo mais sério. Não faria mal checarmos com os médicos — disse, e não pude deixar de notar o esforço que fez para parecer casual.

Revirei os olhos.

— De novo, Aurora? Não acabei de falar que se piorar eu vou te avisar? — Perdi a paciência.

Será que ela fazia ideia do quanto era irritante?

— Você também é a única pessoa que eu tenho! Posso ficar assustada com a situação? — Sua voz saiu um pouco gritada.

Talvez fosse a música de fundo que, agora que notei, estava me irritando pela poluição sonora.

Não consegui dizer mais nada. Ela só estava com medo, o que eu também sentiria no lugar dela.

Continuamos caminhando.

Sabia que era egoísmo, mas até um pedido de desculpas daria margem para mais assunto e não queria mais falar disso.


Nascemos em uma pequena cidade chamada Boieira. Nossas casas eram grudadas, assim como os nossos pais, amigos da mesma turma desde a infância. Quando cresceram, decidiram morar perto. Consigo entendê-los quando penso em Aurora. Tia Léia e tio Luca, os pais da minha amiga, combinavam em tudo, como peças de um quebra-cabeça. Nunca tiveram luxo e havia muito amor entre eles. Quando eu estava chateada, corria para a casa deles e bebia o chá que a tia fazia. Não sei se era apenas a quentura da bebida, ou o quanto esses momentos com ela me aqueciam. Tudo ficava bem depois de uma xícara de chá, como mágica.

Tio Luca era sério, reservado e acolhedor quando necessário. Gostava de ficar perto, mesmo que em silêncio. Eram tudo que eu desejava de uma família.

Úrsula, minha mãe, era controladora e ciumenta. Não gostava de trabalhar fora e a desculpa era por ter que cuidar de mim. Eu era um peso nos discursos dela, mas que a permitia ficar em casa, onde, sem chefes, era ela quem mandava. Meu pai, Maurice, não parecia achar um absurdo o temperamento da esposa. Trabalhava demais, quase não o via. Não compreendia o motivo de estarem juntos, pois só brigavam. Mamãe gritando, papai se justificando, e eu? Correndo para a casa da Rora, de pijama ou da forma que estivesse, em qualquer horário.

Quando fiz dezoito anos, mudei para a capital. Arrumei emprego em um Café, dentro de uma livraria. Aluguei um pequeno apartamento e comecei a minha vida sozinha. A saudade que sentia de alguns era confortada pela paz de não precisar mais suportar outros.

Quatro anos depois, passei a gerente do Café, tive um bom aumento de renda e com o que havia guardado, consegui comprar o Corsa e um apartamento com um quarto a mais, para quando Rora quisesse me visitar.

Foi nessa mesma época que, voltando de um retiro da igreja, Rora e os pais sofreram um acidente na estrada. O motorista, que bateu de frente com o carro deles, estava bêbado. Tio Luca faleceu na hora, tia Léia no caminho para o hospital, e Rora passou dias internada, mas maior sequela que teve foi a necessidade de aprender a viver sem os pais. Não desgrudei dela até que tudo estivesse resolvido. Ela não tinha condições de nada.

Quando finalizamos a parte burocrática, a convidei para morar comigo. Com a venda da casa onde moravam, os seguros pelo acidente e de vida dos pais, ela conseguiu uma boa reserva de dinheiro, pediu transferência para a faculdade da capital, finalizou o curso de veterinária e continuou morando comigo.

Úrsula faleceu um ano depois, de infarto.

Restamos apenas eu, Rora e meu pai, com o qual nunca tive muito contato. Nos falávamos uma vez ou outra, geralmente em datas comemorativas. Ele deveria dar graças a Deus todos os dias por eu não lhe dar trabalho.

No fim, Rora era a única família que eu tinha.

— Pilates em um minuto, pessoal! — a professora gritou, enquanto caminhava para a sala.

— Será que é aquela aula em que as pessoas parecem um corpo sem ossos? — Rora perguntou, enquanto descíamos das esteiras.

— Não. Isso é Yoga. Já espiei algumas aulas de pilates, eles costumam usar bolas de borracha — respondi, e logo tivemos a confirmação.

Entrando na sala, a professora orientou que cada um escolhesse uma bola do tamanho das de vôlei. Escolhi uma.

— Muito bem, pessoal. Deitem de barriga para cima, acomodem a bola no meio das costas. Assim, equilibrando o peso — a professora falava e demonstrava.

Tentei imitá-la, mas as coisas não começaram muito bem.

Não conseguia me equilibrar e as pernas não davam a sustentação que eu precisava.

Observei que Rora realizava corretamente o exercício e, um tanto ofegante, sorria para mim. Retribuí o sorriso, só que completamente frustrada. Parecia tão simples. Por que eu não conseguia?

Quando achei que estava dando certo, a professora mudou o exercício. Agora tínhamos que, ainda deitados de barriga para cima, levantar as duas pernas e acomodar a bola no meio das canelas. Foi mais difícil que o exercício anterior. E, para piorar, percebi que Aurora me observava preocupada. Minha visão embaçou um pouco pelas lágrimas que começaram a se formar. Esfreguei os olhos. Não faria uma cena na frente de todos. Recuperando o pouco de dignidade que restava, abandonei a bola e sentei em um canto da sala, observando o resto da aula em silêncio.


— Sua bola estava com defeito? — Rora zombou, quando saímos da sala de pilates.

— Cala a boca! — xinguei e rimos da situação.

Sabíamos que eu era um desastre ambulante na vida e cada vez tinha mais certeza que ser fitness não era para mim. Mas a brincadeira pareceu mais a nossa maneira de lidar com a situação.

Havia alguma coisa estranha, eu só não sabia explicar o que estava sentindo.

— Quer tentar as bicicletas?

— Você acordou animada — brinquei.

Caminhamos em direção à sala com os aparelhos.

— Bom dia, pessoal, a aula começa em dois minutos! — gritou outra professora.

— O quê? Tem aula disso também? Pensei que fosse só sentar e pedalar — sussurrei.

— Parece que tem.

Nós nos acomodamos nas bicicletas, não haviam muitos alunos. E até que comecei bem. Pedalei algumas vezes, empolgada por conseguir fazer alguma atividade, até que me desequilibrei e quase bati o rosto no guidão.

— Ai!

— Que foi? — Rora perguntou, sussurrando.

— Meu pé escapou do pedal! — tentei sussurrar de volta, mas a voz saiu um pouco exaltada.

Pensei que pedalar seria mais fácil que a aula de pilates.

Vi minha amiga descer da bicicleta e se aproximar para examinar os pedais, com uma expressão de quem salvaria a nação com suas observações.

— Você pode prender os pés nos pedais. Viu que tem fivelas?

Ela me ajudou a prender os pés e retomou o treino.

Dispensamos a ajuda da professora que veio ver se estava tudo bem.

Mais um dia foi salvo pela super Aurora. Era incrível como ela sempre tinha uma solução para tudo.

Respirei fundo e comecei a pedalar de novo. Na terceira pedalada aconteceu de novo.

— Eu não consigo — lamentei.

Ou as fivelas estava quebrada, ou os meus pés estavam com algum problema, pois nada parecia segurá-los nos pedais.

— Tudo bem. Estou um pouco cansada hoje por te chegado tarde. Podemos ir embora, se você quiser — ela propôs e concordei com a cabeça.

Não conseguia entender o que havia de errado comigo.


Estávamos caminhando em silêncio para o carro, quando o celular dela vibrou. Assim que viu do que se tratava a mensagem, ela sorriu.

— Então, ele enviou mensagem primeiro? — perguntei o óbvio. — Qual o nome dele?

— Filipi — disse e sua voz saiu mais como um suspiro. — Quer me ver hoje de tarde.

— Que rapaz grudento.

— Eu também quero vê-lo. — Ela deu uns pulinhos, animada.

— Que duas pessoas grudentas.

Aurora gargalhou. Em seguida ficou séria.

— Você vai ficar bem?

— Claro que sim — menti.

— Ótimo. Pode me emprestar o vestido florido? Não o curto, o outro do Natal, acho que vai combinar com a sapatilha verde, sabe? A que eu trouxe da… Mit!

Ouvi Rora gritar como se estivesse em um universo paralelo.

Em um minuto eu estava ao lado dela, no outro, largada no chão.

A minha bolsa voou longe, esparramando as coisas por todos os lados. Não sei bem como, mas torci o pé, ao ponto de perder totalmente o equilíbrio, sem ter tempo de segurar em qualquer coisa.

— Ai! Caramba! Qual é o meu problema hoje? — gritei, irritada.

A dor não veio no primeiro momento. Segundos depois, comecei a sentir o tornozelo queimar e não tinha forças para levantar.

— O que eu faço? Deixa eu te ajudar a levantar. Ou... quer que eu chame uma ambulância? — Rora tagarelava, rodando em volta de mim.

Seu desespero era quase palpável.

— Rora, por favor, para. Respira. — Ela arregalou os olhos me encarando e acho que não estava respirando. — Consegue pegar as minhas coisas? — pedi.

Observei ela obedecer, enquanto criava coragem para levantar.

— Oi, meninas. Está tudo bem? — Ouvi alguém perguntar.

Apareceram dois rapazes da academia. Que vexame!

— Ela caiu... — Rora começou a explicar, enquanto terminava de juntar as minhas tralhas.

— Mas já estou bem. Obrigada — respondi envergonhada, tentando dispensá-los.

— Posso te ajudar a levantar? — O mais alto deles perguntou.

Acabei aceitando, já que ajudaria a sair mais rápido daquela situação.

No segundo em que coloquei o pé no chão, um choque percorreu o meu corpo e uma dor aguda me fez gritar, de forma quase involuntária.

A dor era tanta, que não impedi as lágrimas dessa vez. Rora soltou um gritinho reprimido na garganta e colocou as mãos na boca, sem tirar os olhos de mim.

— Não vai conseguir caminhar — o rapaz falou. — Pra onde estavam indo?

— Pro carro. — Minha voz saiu fraca. — Aquele preto, ali.

— Qual o seu nome? — ele perguntou, e fiquei um pouco irritada.

Não estava em condições de fazer amizade.

— Mit, Mitali.

— Muito prazer, Mitali. Me chamo Pedro. Acho mais seguro eu te carregar até o carro.

Ele só estava sendo educado. Fiquei constrangida por ter pensamentos tão rabugentos. Concordei com a cabeça.

As lágrimas rolavam nas minhas bochechas. Eu não sabia mais se pela dor ou constrangimento.

— Coloca ela no banco de carona. Pode deixar que eu dirijo, Mit. — Rora vinha atrás de nós, falando e carregando as coisas.

— Obrigada — agradeci, assim que estava acomodada. — Desculpa o incômodo.

— Precisam de mais alguma coisa?

— Estamos bem. — Tentei sorrir, limpando o rosto com as mãos. — Obrigada mesmo.

— Não por isso.

Assim que Pedro e o outro rapaz, em quem eu mal reparei saíram, Rora arregalou mais os olhos, encarando as minhas pernas.

— Eu vou te levar no médico, Mit. Agora! Eu que vou dirigir, não pode fazer nada sobre isso.

Ela estava certa.

— Tudo bem. Vamos agora cedo, assim temos a tarde livre. E você consegue ir encontrar o grudento.

Minha amiga ligou o carro.

— Você é prioridade — soltou.

Seu tom era sério, mas tão dramático que me fez sorrir.


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